segunda-feira, 3 de maio de 2010

Texto de Andre Susin Mestrando em Filosofia- Ufrgs

O estranho sonho de Alice


“Alice no país das Maravilhas” pode ser abordada tendo como tema condutor, a ideia de uma crítica da realidade adulta através do imaginário onírico da criança. Vamos dizer que através das figuras de sua fantasia maravilhada e surpreendente, ela acaba revelando as inconsistências ocultas de uma realidade aceita e dada. Ela confronta essa realidade extremamente moralizante com sua contraparte cômica e absurda. Desde o primeiro capítulo da obra vemos sendo mobilizado os pares de opostos bom senso burguês/irracionalismo das figuras poéticas com que Alice se defronta; passividade/atividade da criança.
No inicio da obra o que mais nos chama a atenção é a descrição dos sentimentos subjetivos da Alice. Nós vemos Alice extremamente entediada e sonolenta com a leitura que a irmã faz para ela, ali sentada no jardim, a beira de um lago. Nas representações habituais vemos a irmã mais velha lendo um livro para Alice. Mas o que o texto nos diz é que a irmã lia um livro e que Alice já havia espiado algumas vezes o que ela lia. A pergunta que temos que fazer é: que tipo de livro a irmã de Alice está lendo naquela tarde de forte calor? A resposta a Alice mesma nos fornece: um livro sem diálogos e sem figuras. Nós temos que pensar que a obra de Lewis Carrol foi escrita em plena era vitoriana. Tratava-se de um período marcado por um extremo rigor moral, por uma grande repressão sexual e um rígido controle do imaginário. Os valores e virtudes valorizadas, no século XIX inglês, eram a disciplina, a retidão (seriedade), a limpeza, o trabalho árduo, a autoconfiança, o patriotismo. As virtudes eram também entendidas em suas conotações sexuais de castidade e fidelidade conjugal. A imagem que temos desse período, se aproxima da concepção popular do Vitorianismo como obsessivamente puritano em suas caracterizações, um período de forte repressão sexual.
O estilo literário mais apreciado nessa época era o romance ou folhetim, geralmente publicado em fascículos semanais em revistas que tratavam sobre assuntos relativos à classe média inglesa. Tais textos serviam, em princípio, ao entretenimento das famílias que cultivavam o hábito dos serões de leitura, já que as performances teatrais não eram vistas com bons olhos; mas tais textos deveriam prestar-se à exaltação dos valores morais. A respeito disso é interessante salientar que os próprios editores davam conta de assegurar que nenhum texto publicado ferisse este princípio de reserva moral. Tratava-se, então, de um mundo que procurava conter toda e qualquer manifestação de sensualidade, que procurava arduamente promover o decoro, que repreendia tudo aquilo que fosse contrário ao bom senso e à ordem puritana. A literatura vitoriana exerceu, sem dúvida, um papel social dos mais importantes. Numa época em que os alicerces da sociedade eram erigidos a partir do seio da própria família, no cultivo dos valores já mencionados de retidão, seriedade, decoro, etc., com homens, mulheres e crianças exercendo papéis bastante definidos, a leitura edificante, realizada por e aos familiares era algo da maior importância. Talvez seja contra esse mundo extremamente conservador, de uma moral rigorosa que assinalava fortemente o papel e a posição da criança com relação ao mundo adulto que a personagem Alice se esforça por se emancipar.
Sobre o estatuto da criança é interessante reportar-se ao que o próprio autor disse em 1887, como sendo uma das razões, uma das motivações que estavam na origem desse livro. Ele dizia que sua intenção era “explorar um novo tipo de contos de fadas e isso para agradar uma criança, uma menina que ele amou”. Essa menina era Alice Lidell, uma das três filhas de seu amigo Henry Lidell. Conta a história que Carroll e seu amigo, o reverendo Duckworth, passeava de barco pelo rio Tâmisa todas as manhãs com as irmãs Lidell. Nessa época, Alice tinha dez anos de idade. Durante o passeio, com a intenção de divertir e agradar as meninas, Carroll foi inventando grande parte das aventuras que depois viriam a integrar a história tal como nós a conhecemos. Foi nesse momento, que a menina Alice, encantada com as histórias, pediu que Carroll escrevesse o livro. Nós vemos esse incidente sendo narrado no poema que abre o livro. Nesse poema, o autor faz menção ao passeio de barco ao lado das irmãs.
Nesse sentido, Lewis Carrol procurava se manter fiel à tradição do conto de fadas, tradição essa que havia sido interrompida pela época das Luzes, pelos ideias iluministas de emancipação através da educação e da valorização da racionalidade. Temos que lembrar que nessa época, esse ideal também já começava a ser questionado por filósofos como Marx e Nietzsche, e por diversos movimentos sociais que se fortaleciam nas sociedades européias. O conto de fadas sofreu uma forte retração quando se pensa que a época das Luzes perseguia toda e qualquer forma de superstição, de pensamento mágico. Por isso há toda uma verdadeira cruzada, permeada por esse espírito putitano, que se arma contra as fadas, os elfos, as bruxas, assimilados à criações diabólicas. Carroll precisa que sua intenção era de retomar, de se inserir no quadro dos contos de fada tradicional, pois que se tratava, na primeira ideia que ele teve da história, de fazer com que sua heroína se encontrasse na toca de um coelho. Mas é justamente aí, quando Alice deixa o mundo habitual, o jardim vitoriano com toda a sua moralidade repressora, que ela entra no universo do maravilhoso: ou seja, que uma pequena menina possa seguir um coelho ao fundo de sua toca, entender, falar e compreender sua linguagem reenvia a um mundo onde tudo é possível, onde a fronteira mesma entre o possível e o impossível não se deixa mais conceber nos termos da realidade. Nós entramos aí em uma outra temporalidade e em uma outra articulação do discurso que não é mais aquela do raciocínio desperto, mas do tempo onírico, do modo de articulação dos sonhos regulado pelos processos de condensação e deslocamento. Do mesmo modo, e aqui reside a principal diferença com relação ao conto de fadas tradicional, é a posição crítica e insólita que a protagonista assume com relação a esse mundo maravilhoso. Então, o que vemos é Alice passando daquele gesto de espiar o livro da irmã, entendiada por estar ali sentada sem fazer nada, naquela atitude de extrema passividade que era esperado de uma criança, passar para um plano de meditação, um plano de contemplação onde ela pressente o prazer de sair daquela atitude recatada, passiva, conforme os valores morais da era vitoriana, e colher flores para fazer uma guirlanda de margaridas. É nesse momento que ela vê um coelho passar correndo perto dela. O que é notável aqui é que a visão do coelho provoca em Alice uma dupla reação: num primeiro momento ela não viu nada de estranho naquilo, ou seja, que um coelho usasse colete, dele tirasse um relógio de bolso e murmurasse para si mesmo que estava atrasado. Aqui vemos um descentramento da história com relação ao maravilhoso tradicional – o maravilhoso aqui adquire um novo estatuto: ele não serve apenas para tornar tudo possível, tornar aquilo que é estranho em natural, mas para gerar efeitos de surpresa. É claro que a ideia de maravilhoso enquanto tornar tudo possível está presente quando Alice, querendo passar pela pequena porta que dá acesso ao jardim cheio de flores e fontes fresquinhas – que contrasta com o jardim em que ela estava sentada ao lado de sua irmã – imagina um meio de ficar pequena de modo a caber por aquela passagem. É como se ela dissesse: bom, já que tantas coisas maravilhosas acontecerem ultimamente, parece que nada mais é impossível de acontecer. Mas o que é mais interessante são esses lances de surpresa que acontecem na obra a todo momento. O choque de surpresa se caracteriza por esse arrebatamento que cliva a percepção, que faz com que a mesma realidade, a mesma coisa, seja vista diferentemente. Trata-se do surgimento de algo outro e inesperado que desafia e não se encaixa bem nas nossas categorias e expectativas habituais. Por outro lado, a surpresa maravilhada e insólita permite ao sujeito conceber que aquilo que lhe parece ser natural nada mais é que a banalização habitual de um longo hábito que esqueceu o fundamento estranho do qual essa aparente naturalidade se originou. E aqui seria interessante fazer uma rápida menção ao texto de Freud intitulado “O estranho”. Nesse texto freud explora a vinculação entre a noção de estranho a algo de extremamente familiar, conhecido, ou seja, certos fenômenos que estão na origem de determinados processos psíquicos. O importante aqui é apenas reter a ambiguidade do fenômeno do insólito que nos coloca em um estado de incerteza intelectual. Dessa maneira, o elemento do maravilhoso é aquilo que irrompe subitamente na realidade criando essa sensação de incerteza, um sentimento de ambiguidade que não se deixa reduzir a nenhum conceito, a nenhum juízo enfático. Assim, o maravilhoso coloca em dúvida, problematiza as regras e instituições que ordenam o espaço social na medida em que algo de aparentemente absurdo e sem-sentido eclode, de repente, sob a superfície do cotidiano. O maravilhoso, que em certo sentido remete ao contexto dos contos de fada – quando uma fada boa, com sua varinha de condão, realiza todos os desejos de seus protegidos –, penetra na vida cotidiana e transforma em estranho e incerto aquilo que era habitual e conhecido. Trata-se do assalto disso que há de inquietante e está no fundo de nossas relações regradas. Podemos dizer que toda a nossa subjetividade se organiza em torno de um núcleo traumático: é só pensar no caso do “Homem dos Lobos”, em que todas as fantasias, as ansiedades, as perturbações do indivíduo se deviam a cena primordial da relação sexual de seus pais; ou então, a cena traumática primordial que existe no inconsciente de certos indivíduos e que deforma e inibe sua atividade criativa, tal como a de um pai gritando que ele não passa de um inútil, que ele não fará nada de bom na vida.
Vemos, assim, que se trata de uma fuga do real opressor, de uma realidade desagradável à criança porque regrada exclusivamente pelo adulto. Então Alice desloca-se pelo país das Maravilhas, através de uma evasão pelo imaginário onírico. Ela deixa o jardim vitoriano e ingressa em um espaço íntimo regulado pela lógica do sonho, da fantasia. Nesse ponto, Alice não deixa de ilustrar algo sobre o desejo e a fantasia. O sonho e a fantasia não são a realização do desejo, mas outra coisa. O papel do sonho não é realizar os nossos desejos (pois se fosse assim, porque a gata de Alice nunca aparece?), mas é adiar o nosso encontro com a coisa que desejamos, pois apenas assim nós continuamos a desejar. Por isso, a fantasia nada mais é que o espaço onde o desejo é reproduzido, onde ele circula, onde ele é articulado. O espaço da fantasia é o lugar onde podemos articular nossos desejos, o que faz com que os objetos da realidade não sejam banais, triviais.
Nessa caminhada íntima pelo mundo do sonho, a personagem acaba emancipando-se de certa forma na medida em que ela vai superando os percalços, as dificuldades que vão surgindo à medida que ela vai percorrendo esse mundo interior. Essa desconformidade com a realidade circundante acaba por afirmar a inserção do maravilhoso no real. O que caracteriza essa viagem pelo país das maravilhas é o questionamento constante do mundo adulto, das instituições e normas que regulam as relações dos adultos entre si e dos adultos com relação às crianças.
O fantástico em Alice no país das Maravilhas não pertence ao cotidiano, ao natural, aquilo que é normal tal como acontece nos contos de fadas. O “era uma vez” dos contos de fada funciona como um mecanismo de suspensão das incongruências dos fatos narrados com relação à realidade; ele cria um espaço de literalidade, ou seja, quando um gato, um urso, uma árvore falam isso não tem nada de estranho para os personagens envolvidos na história, mas temos que tomar isso ao pé da letra, no sentido de que o gato está realmente falando. No caso da Alice, o maravilhoso é aquilo que surpreende, é o lugar do estranhamento, onde situações novas são experimentadas. Assim, Alice, ao deparar-se com suas próprias fantasias, admira-se e assombra-se, espanta-se com a presença desse imaginário onírico dentro de si mesma. Nesse sentido ela parece deixar a pergunta à época de se é possível pensar no mundo exterior, esse mundo socialmente compartilhado, sem a deformação desejante provocada pelo mundo interior, pelo imaginário subjetivo. Por contaminação o mundo exterior é visto como uma tela de projeção de nossas fantasias, sem a qual nada existe.
Então através do imaginário onírico da criança, das fantasias interiores, Alice acaba realizando um exercício crítico da sociedade adulta. A moralidade vitoriana acaba sendo contestada por meio desse percurso pelo maravilhoso. Por isso, nos diversos personagens da história podemos ver a condensação e o deslocamento de figuras que pertencem à realidade de Alice, tal como o cortesão preocupado com a pontualidade, que também é explorada no caso do chá-das-cinco; os esportes britânicos como o criquete são ironizados na cena do jogo com os flamingos; a imitação realista do mundo e a logicidade e organização coerente e racional do mundo na sequência do Gato; o incessante questionamento da organização linguística; na cena do julgamento, a prepotência e o arbítrio imperiais, o moralismo da nobreza, a repressão familiar, a burocracia estatal, etc.
O confronto de Alice com essa realidade vitoriana passa pelo aprofundamento do seu olhar através do percurso íntimo, pelas suas fantasias, pelo territorio do maravilhoso que mostra o fundo de absurdo que sustenta o mundo adulto.
O que pretendo dizer com essa aura de estranheza sentida pela própria Alice e que irrompe na vida cotidiana por meio das fantasias da menina? Que ao deformar o tecido linguístico, as normas sintáticas, os hábitos retóricos e discursivos, os jogos lógicos de linguagem e as figuras cômicas e absurdas ressoam dissonâncias de um além excêntrico. Essa excentricidade designa um estado de ingenuidade específica que vincula o descentramento de uma loucura à inteligência e imaginário infantis que produzem imagens inquietantes para as fantasias da época vitoriana sobre a razão e os relacionamentos sociais. Alice parece ser atraída e orientada por essa estranheza que ela capta, adivinha naquilo que há de mais habitual nos modos e costumes dos adultos, condensada em sua fantasia.
Desse modo, a obra de Carrol deixa captar o que há de essencial na experiência estética, ressaltado pelos filósofos ultimamente, que é esse vislumbrar daquilo que permanece inacessível para nós, os limites do nosso saber, do que pode ser conhecido. É um confronto com a alteridade absoluta, com aquilo que nunca é assimilado pelas aparências que procuram esgotar a realidade.

Fontes:
Rosenfield, K. Antígona – de Sófocles a Hölderlin.Wayne, E. O solo do sonho

2 comentários:

  1. Beleza de artigo de meu querido André e mais Carmen e suas artes... Parabéns!

    Abração saudoso!!

    Idalina

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  2. Que texto bacana e bem fundamentado. Uma Lindíssima e riquíssima contribuição de um pensador tão querido e generoso.
    Obrigada André!!!

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